Ciclo de poemas: TANTA MARÉ, TÃO POUCA MARINHAGEM (II)

II

RECORTES

Casas-cadáver fedem a solidão

homens e mulheres de meia-idade tocam-se

querendo saber se ainda estão vivos

os velhos respiram a medo, devagar

não se pode gastar muito, dizem

os jovens amam-se

em camas de rua de becos sem saída

em vãos de escada de prédios sem habitantes

nos vestíbulos de fábricas desactivadas

nos adros das igrejas sem fiéis

nas ruas de um país sem futuro,

amam-se com o que têm no peito e no corpo desnudo

as crianças acoitam-se e aquietam-se submissas

não há sinais de estranheza

nem prantos

nem gritos

Outra vez a fome enfileirada

a barriga inchada de coisa nenhuma

os olhos vazios de um vazio atroz

os pobres da sopa

a gente que poupa

os bancos da fome

dos homens sem nome

uma ideia que vence

um país que agradece

mas há os mal agradecidos

os que querem mais que uma sopa

os que não se contentam em apaziguar as entranhas enfraquecidas

os que querem ser astronautas, marinheiros ou professores

num país que não se alimenta nem serve de alimento

tanta maré, tão pouca marinhagem

É a maré negra de um país não possível

o lucro fácil da toxicidade

a inanidade dos esforços

o desespero de alguém que em perda se perdeu

baniu-se o talvez sim

sonha-se pouco, sonha-se nada

multiplicam-se as ondas

a maré em cólera rebenta os cabos

derruba os mastros

não há leme que governe

só maré

maré sem marinhagem

em deriva a embarcação prossegue

                                                                                          (continua)

by: Sara Loureiro

Sobre Salou

Sara Loureiro (SALOU) segue um caminho que reconhece que é o Seu: o da aprendizagem e busca constantes.
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